A descoberta arqueológica que revela violência escravocrata em bairro japonês de SP
Prefeitura de SP já tem o projeto para a construção do Memorial dos Aflitos, na Liberdade Turístico e historicamente associado à imigração japonesa, o ba...
Prefeitura de SP já tem o projeto para a construção do Memorial dos Aflitos, na Liberdade Turístico e historicamente associado à imigração japonesa, o bairro da Liberdade, na região central de São Paulo (SP), tem um passado ligado à violência escravocrata do Brasil. Um novo achado arqueológico, cuja descoberta foi divulgada nesta quarta-feira (19), reforça esse passado. Em escavações realizadas na Capela dos Aflitos, igreja ligada à Arquidiocese de São Paulo e localizada na Liberdade, foram encontrados restos mortais de cinco a dez pessoas — pesquisadores ainda estão analisando o achado para determinar exatamente quantas ossadas estão ali. ✅ Clique aqui para se inscrever no canal do g1 SP no WhatsApp A descoberta comprova o antigo uso do local como cemitério de condenados à pena capital — em geral, escravizados fugitivos que eram recapturados e executados. Segundo os pesquisadores, a probabilidade é alta de que esses corpos sejam de pessoas negras, mas isso ainda será analisado em laboratório. Exatamente onde hoje fica a Praça da Liberdade havia um local chamado Campo da Forca — algo que já era sabido antes da nova descoberta arqueológica. Entre 1765 e 1874, ocorriam ali execuções de pessoas condenadas ao enforcamento em São Paulo. Aqueles que não tinham o corpo completamente mutilado eram sepultados no cemitério em volta da capela. Dos corpos achados, acredita-se que cinco passaram pelo chamado sepultamento estruturado, quando os restos mortais estão organizados em jazigo ou cova específica — diferente da cova rasa ou mesmo da colocação de ossadas em outro lugar, sem organização ou critério. Liberdade, no Centro de SP, é eleito um dos 25 melhores destinos turísticos do mundo Após pressão, luminárias japonesas são retiradas de área de memorial a escravizados Restos mortais encontrados em capela terão sua origem analisada Divulgação/Zanettini Arqueologia Esses cinco corpos foram encontrados a cerca de um metro de profundidade, na área do antigo velário. Na área da sacristia e do banheiro, a menos de 50 centímetros de profundidade, foram localizados ossos desestruturados. Em conversa com a BBC News Brasil, o arqueólogo Paulo Zanettini, que comanda o trabalho das escavações no local, explica por que ainda não é possível determinar o número de corpos encontrados. "O trabalho está em pleno andamento e alguns ainda podem ser achados. No chão da sacristia, há um amontado de seres humanos e precisamos reconstituir as peças desses quebra-cabeças de potenciais indivíduos", esclarece. A descoberta recente, divulgada pela Arquidiocese de São Paulo, soma-se a uma anterior: em 2018, arqueólogos encontraram ali restos mortais de oito pessoas. As duas descobertas consolidam a história de violência, sobretudo contra africanos e afrodescendentes, do bairro. Conhecido turisticamente pela herança japonesa, bairro da Liberdade também tem grande importância para a história dos negros em São Paulo Getty images As escavações foram realizadas porque a Capela dos Aflitos passa por uma restauração, ainda sem previsão de finalização. O local está atualmente fechado ao público. De acordo com a arquidiocese, trabalhos foram feitos em pontos específicos da sacristia, do adro, da nave central, da nave lateral esquerda e da área do velário da capela, com o objetivo de avaliar o estado de conservação da estrutura. A área da capela é considerada parte de um sítio arqueológico. Como se trata de uma área de importância histórica, a empresa Zanettini Arqueologia foi contratada para acompanhar o trabalho de restauração. Foram encontrados remanescentes humanos, fragmentos de cerâmica e de louça e um enxoval funerário. Segundo Paulo Zanettini, um dos indivíduos foi enterrado com adereço e um colar. Esses elementos indicam que se tratava de pessoa importante para sua comunidade. A arquidiocese tomou a decisão, em conjunto com lideranças comunitárias e do comitê gestor criado para a obra, de remover o material dali para estudos. As imagens da descoberta não serão divulgadas em respeito aos antepassados negros da comunidade. No caso dos remanescentes humanos, decidiu-se retirar do local apenas os que estavam fora de sepulturas. Esse trabalho de exumação e remoção começou a ser feito nesta semana, conta Zanettini. A ideia é que as ossadas sejam analisadas no Laboratório de Arqueologia e Antropologia Ambiental e Evolutiva da Universidade de São Paulo (USP). De acordo com o arqueogeneticista Tiago Ferraz, pesquisador na USP, isso deve ser feito em breve, mas ainda sem previsão. Os ossos descobertos em 2018 já estão no laboratório. Com a análise de DNA, espera-se descobrir definitivamente a origem étnica dessas pessoas. Ferraz afirma que quer, antes das análises em laboratório, "ter uma conversa muito sincera com as comunidades negras" ligadas à memória da Liberdade, para depois fazer essa pesquisa — em respeito ao trabalho de "retomada da memória e da ancestralidade dessas pessoas". Em seguida, os restos mortais devem ser sepultados novamente no solo da capela. Segundo Zanettini, é um sinal de respeito, já que eles foram enterrados em local considerado sagrado e, por consenso entre os envolvidos no trabalho, decidiu-se manter essa condição. Do esquecimento ao resgate Para especialista, a visão eurocêntrica que predomina em São Paulo contribui para apagamento do passado afro da cidade Divulgação/Zanettini Arqueologia No mundo acadêmico, a descoberta já ecoa. Professor na Universidade Estadual Paulista (Unesp), o historiador Paulo Henrique Martinez diz à BBC News Brasil que o retorno crítico a episódios de violência do passado "é a bola da vez nas políticas públicas de memória mundo afora". "Na variedade de tipos de patrimônio histórico e cultural paulistano, a Capela dos Aflitos e seus remanescentes materiais e humanos inscrevem-se no acervo de experiências e de testemunhos da memória traumática que está adquirindo expressão cultural e relevância histórica e política no século 21", pontua ele, que não esteve envolvido na descoberta. Para o historiador, outro aspecto importante da descoberta é trazer mais evidências sobre o passado afro do bairro, que vem historicamente sendo "recoberto com a capa do esquecimento e da invisibilidade". É preciso "encarar esse passado [escravocrata] com vigor e lucidez, olhar firme e fixamente nos olhos dessa tragédia", defende Martinez. Pesquisador no Instituto Presbiteriano Mackenzie, o historiador Victor Missiato diz que esse tipo de descoberta deve ajudar a "reconstituir o máximo da história dessas pessoas [escravizadas e ex-escravizadas] para termos em mente as atrocidades que aconteceram" no bairro. Para Missiato, a visão eurocêntrica que predomina em São Paulo contribui para apagar esse passado afro, e descobertas como a desta quarta-feira ajudam a resgatar a identidade da população negra na cidade. A origem do nome 'Liberdade' A Capela dos Aflitos está fechada para público enquanto passa por restauração, ainda sem previsão de entrega Reprodução A Capela dos Aflitos, dedicada a Nossa Senhora dos Aflitos, foi erguida em 1779. Na época, ficava dentro do chamado Cemitério dos Aflitos, que havia sido aberto quatro anos antes. Era o local de sepultamento dos excluídos da sociedade: escravizados, indígenas, pobres e condenados à morte no vizinho Campo da Forca. Na maior parte das vezes, aliás, pessoas que se enquadravam em mais de um desses quesitos. O cemitério só foi desativado na segunda metade do século 19, após a inauguração, em 1858, do Cemitério da Consolação. Então, o terreno foi loteado pela administração da Igreja Católica em São Paulo na época. Restou para a hoje arquidiocese apenas o beco e pequena capela, atualmente circundada por edifícios. Originalmente erguida em taipa de pilão, a igrejinha passou por várias reformas e ampliações — as duas maiores foram em 1890 e em 1960. No início dos anos 1990, um incêndio, provavelmente causado por problemas elétricos, danificou consideravelmente a capela, que precisou de obras de restauro. Em 2018, rachaduras nas paredes apareceram e parte do telhado cedeu. Segundo divulgado na época, o problema foi causado por uma construção na vizinhança. Em 2020, a prefeitura autorizou a desapropriação desta construção, o que ocorreu três anos depois. O projeto é que ali funcione o Memorial dos Aflitos, ainda sem previsão de inauguração. Embora não seja consenso entre pesquisadores, há uma versão que atribui ao passado de violência contra os negros o nome do bairro. "Liberdade" seria uma referência à história de Francisco José das Chagas, soldado negro conhecido como Chaguinhas. Ele foi condenado à pena capital porque havia liderado um motim em seu batalhão, cobrando o pagamento de salários atrasados. Diz essa versão que, quando estava sendo executado, em 1821, a multidão gritou "liberdade". O nome teria vingado, e Chaguinhas virou santo popular — essas figuras que são veneradas por fiéis mesmo sem a aprovação eclesial. Acredita-se que o local onde ele ficou preso enquanto aguardava a execução seja exatamente onde é o velário da capela. O local se tornou ponto de peregrinação. Toda essa história ganha contornos mais nítidos quando achados arqueológicos são descobertos — e essas pesquisas vêm a público. "A presença de elementos materiais confere atualidade e permite questionamentos tanto sobre a memória preservada quanto sobre a memória apagada e silenciada. Levam diretamente ao coração da história da cidade e de seus habitantes", comenta Martinez. "Espaços de dor, enclausuramento e castigos tornaram-se relevantes espaços pedagógicos para a promoção e a educação em direitos humanos, justiça, conhecimento, reparação aos indivíduos e grupos sociais afetados", continua o historiador. "São termômetros sociais da eficácia da democracia baseada na igualdade e na liberdade." Liberdade, afinal, se tornou o nome do bairro.