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Defesa de juiz que usou nome falso diz que ele sofre de 'transtorno de personalidade esquizoide'

Advogados de José Eduardo Franco dos Reis, o juiz Edward Albert Lancelot Dodd Canterbury Caterham Wickfield, afirmaram que ele não agiu para 'prejudicar terce...

Defesa de juiz que usou nome falso diz que ele sofre de 'transtorno de personalidade esquizoide'
Defesa de juiz que usou nome falso diz que ele sofre de 'transtorno de personalidade esquizoide' (Foto: Reprodução)

Advogados de José Eduardo Franco dos Reis, o juiz Edward Albert Lancelot Dodd Canterbury Caterham Wickfield, afirmaram que ele não agiu para 'prejudicar terceiros'. Um juiz fez toda a carreira usando um nome falso e ninguém sabe por quê Os advogados de José Eduardo Franco dos Reis, conhecido como o juiz aposentado Edward Albert Lancelot Dodd Canterbury Caterham Wickfield, disseram à Justiça que Reis apresenta características que "coadunam para o diagnóstico de Transtorno de personalidade esquizoide (TPE)". Acusado de uso de documento falso e falsidade ideológica em três episódios recentes – porque os mais antigos já prescreveram – o magistrado aposentado apresentou resposta à acusação na ação penal em que é réu na Justiça de São Paulo. Ao apresentar um laudo médico, a defesa pede à Justiça "a instauração do incidente de insanidade mental". Na entrevista com o psiquiatra que assina o documento, Reis relatou paixão pela língua inglesa" e vontade de "renascer outra pessoa". (leia mais abaixo) A resposta à acusação foi enviada à Justiça na sexta-feira (16) e é assinada pelos advogados Alberto Toron e Renato Marques Martins. Edward x José: Juiz usou documentos com nomes diferentes por 44 anos Testemunhas Os defensores também listam seis testemunhas de defesa, das quais cinco são identificadas como desembargadores do Tribunal de Justiça de São Paulo. José Eduardo Franco dos Reis foi denunciado pelo Ministério Público de São Paulo após viver com a identidade falsa por mais de 40 anos, com a qual assinava as sentenças. Ele se aposentou em abril de 2018, quando era titular da 35ª Vara Cível de São Paulo, no Fórum João Mendes. Segundo a Promotoria, "Wickfield" enganou "quase a totalidade das instituições públicas" utilizando um nome fictício, inventado por ele, ao mesmo tempo em que manteve sua verdadeira identidade ativa. Ele tinha documentos válidos em nome de Wickfield e também em nome de Reis, como dois RGs, dois CPFs e dois títulos de eleitor. "Concluímos que José Eduardo apresenta características compatíveis com o diagnóstico de Transtorno de personalidade esquizóide, e que houve perda da capacidade de autodeterminação desde o momento da decisão pela mudança do nome até os dias atuais, embora mantivesse preservada a capacidade de entendimento em relação ao ato", diz a conclusão do laudo médico apresentado à Justiça pela defesa. "No momento, há indicação de seguimento em psicoterapia semanal, sem necessidade de uso de medicações psicotrópicas e sem apresentar risco para si mesmo ou para terceiros", conclui o médico psiquiatra forense Gustavo Bonini Castellana. Caso juiz Edward: decisões de magistrado com nome falso podem ser anuladas? Especialista explica Sem prejuízo Quanto à primeira acusação contra o juiz, de ter tentado renovar o RG com o nome falso em outubro de 2024, a defesa afirma que o ato não prejudicou ninguém. "O Peticionário [o juiz], movido por uma questão existencial, familiar e triste, sentiu-se, por razões psicológicas, compelido a mudar a sua identidade e recomeçar uma vida nova, mas não o fez com o fim de prejudicar direito ou criar qualquer obrigação jurídica. Prova disso é que ele dedicou a sua vida inteira à nobre função da magistratura, nunca tendo faltado com suas obrigações e nunca tendo se utilizado da segunda identidade, quer para se beneficiar indevidamente, quer para prejudicar terceiros", disse a defesa. Assim, no entendimento dos advogados, o juiz "não agiu com o dolo exigido pelo tipo [penal de falsidade ideológica] e as falsidades objeto dessa ação penal nunca possuíram potencialidade lesiva alguma", o que tornaria a denúncia "inepta" (que não atende aos requisitos legais). Quanto à acusação de uso de documento falso nesse episódio de outubro passado, a defesa argumentou "que deve ser considerado uma tentativa impunível [...], posto que a nova Cédula de Identidade não foi expedida". Isso ocorreu porque, após a Polícia Civil de São Paulo identificar em seu banco de dados que "Wickfield" tinha as mesmas impressões digitais de Reis, o RG não foi emitido. Do mesmo modo, os advogados afirmam que a denúncia não atende os requisitos legais em relação aos outros dois episódios narrados pelo Ministério Público: o registro de um carro; e a expedição de uma carteira de motorista com o nome falso. "[A conduta do juiz] Seria potencialmente lesiva, por exemplo, apenas se a denúncia tivesse narrado que o Peticionário dirigia e praticava infrações de trânsito com uma CNH em nome de José Eduardo Franco dos Reis e pretendesse, com a CNH em nome de Edward, furtar-se dos respectivos pontos", diz a defesa. "Portanto, a CNH em nome de Edward, no presente caso, não tinha qualquer potencialidade lesiva, merecendo a denúncia ser rejeitada", argumentam os advogados. Por fim, a defesa pede que, caso a Justiça decida prosseguir com a ação, que seja analisada a possibilidade de ser firmado um Acordo de Não Persecução Penal (ANPP), previsto na lei para crimes com penas mais brandas. 'Edward Albert Lancelot Dodd-Canterbury Caterham Wickfield' forneceu endereço no Reino Unido Daniel Arce Lopez/BBC O laudo médico Ao médico psiquiatra que o entrevistou, o juiz contou que "nasceu de família pobre e cresceu na Vila Mariana com os irmãos". Seu pai era mecânico e sua mãe, costureira. "Na adolescência descobriu a paixão pela literatura inglesa. Passava horas lendo livros de Charles Dickens, Robert Stevenson e Walter Scott em biblioteca pública. Não sabe de onde veio esse gosto particular já que ninguém na família se interessava, mas sentia que a Inglaterra 'era seu lugar'", relatou ao médico. O juiz disse que, quando fez 18 anos, um colega de trabalho conseguiu transferência para Boston, nos Estados Unidos. "Embora sua prioridade fosse mudar-se para a Inglaterra, achou que era uma boa oportunidade de migrar para um país de língua inglesa. Já falava bem inglês (autodidata) e havia trabalhado como office boy, tendo reservado dinheiro suficiente para arcar com os custos da viagem, já que não tinha apoio do pai", relatou ao médico. Ao chegar em Boston, o juiz contou que não encontrou o amigo, ficou abalado e depois de seis meses voltou ao Brasil envergonhado por não ter tido sucesso em seus planos. Segundo o médico, Reis disse que "queria morrer e renascer outra pessoa." "Tinha vergonha de sua história e de seu nome, e nesse momento um colega de pensão percebendo seu estado, sugeriu que mudasse de nome no RG. Ainda desnorteado e sem encontrar saída para seu drama existencial, aceitou a ideia", disse o juiz ao psiquiatra. "O próprio amigo se encarregou de tudo, inclusive do nome, que faz alusão a personagens da literatura inglesa de que gostava. Não gostou do nome mas já estava feito. A partir daí sua autoestima melhorou, sentia-se mais confiante e a vida profissional engrenou", afirmou Reis. O juiz aposentado Edward Albert Lancelot Dodd Canterbury Caterham Wickfield na verdade se chama José Eduardo Franco dos Reis, segundo o MP GloboNews/Reprodução O caso policial José Eduardo Franco dos Reis virou réu na Justiça paulista em 31 de março, acusado de dois crimes: uso de documento falso e falsidade ideológica. Segundo as investigações, Reis nasceu em 16 de março de 1958, conforme registro feito no cartório de Águas da Prata (SP). Em 1973, ele tirou RG com seu nome verdadeiro. Já em 1980, obteve um RG com o nome de Wickfield apresentando uma certidão de nascimento com dados falsos. Sempre com o nome de Edward Albert Lancelot Dodd Canterbury Caterham Wickfield, que dizia ser proveniente da nobreza britânica, Reis estudou direito na USP, prestou concurso e ingressou na magistratura paulista em 1995. Atuou como juiz por 23 anos, até se aposentar em abril de 2018. A farsa apontada pela polícia e pelo Ministério Público começou a desmoronar em outubro de 2024, quando o juiz foi ao Poupatempo Sé, no centro de São Paulo, tirar uma nova via do RG em nome de Wickfield. As impressões digitais dele foram coletadas e comparadas eletronicamente no banco de dados da Polícia Civil. Essa tecnologia passou a ser aplicada em 2014 a todas as pessoas que tiram RG em São Paulo. Ficha de identificação de Edward Albert Lancelot Dodd Canterbury Caterham Wickfield Reprodução A comparação das impressões digitais apontou indícios de que havia duas pessoas com marcas idênticas. Os investigadores, então, passaram a analisar os documentos dessas duas pessoas e descobriram ser uma só. Na análise documental, os investigadores descobriram que as certidões de nascimento de Reis e de "Wickfield" tinham o mesmo número de registro no mesmo cartório do município de Águas da Prata, mas o restante dos dados era diferente. Reis nasceu em 16 de março de 1958; "Wickfield", em 10 de março daquele ano. Reis é filho de Natalina e José; "Wickfield", de Anna Marie Dubois Vincent Wickfield e Richard Lancelot Canterbury Caterham Wickfield. O cartório informou aos investigadores que a certidão de nascimento de Reis está registrada no local, mas a de Wickfield não tem registro — portanto, era falsa. Enquanto os investigadores aprofundavam as análises sobre a suspeita de duplicidade, o sistema do Poupatempo foi bloqueado automaticamente e impossibilitado de emitir uma nova via do RG de Wickfield. O juiz, então, foi informado pelo Poupatempo de que deveria ir ao Instituto de Identificação para regularizar a situação — o que é praxe nos casos de suspeita de duplicidade, porque pode haver um engano do sistema. Ao chegar ao instituto em 2 de dezembro passado, o juiz foi interrogado pelo delegado Raphael Zanon da Silva. Ali, ele se apresentou como José Eduardo Franco dos Reis e disse trabalhar como artesão. Afirmou também que Wickfield era seu irmão gêmeo, que foi dado para adoção ainda criança. Após a história vir a público, o Tribunal de Justiça de São Paulo decidiu suspender todos os pagamentos a "Wickfield", incluindo sua aposentadoria. A Justiça teve dificuldade de localizá-lo após a abertura da ação penal — ele havia se mudado da capital paulista para Poços de Caldas (MG) no meio das investigações.

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